sábado, 5 de março de 2011

A TRANSFORMAÇÃO DE UM MENINO NUM HOMEM

Já trabalhava nessa biblioteca uns quatro meses quando tive o desprazer de conhecer um garoto no mínimo insuportável. O típico garoto problema: extremamente mimado, um pouco retardado, mal educado e sofria da síndrome de Príncipe Herdeiro. Sabem o que isso significa? Explico: pessoa que teve em sua formação (ou devo dizer De-formação?) a mania de se achar acima de tudo e de todos. Acreditam seriamente que o mundo existe para lhe servir.

O rapaz fazia e acontecia naquela escola. Ninguém o suportava, mas devido a sua origem, seu sobrenome, todos tratavam de tolerá-lo. Ele se achava o máximo! Atormentava as garotas da classe, ofendia as professoras com palavrões indescritíveis, peitava os bedéis do colégio e ainda debochava dos funcionários da limpeza fazendo questão de sujar onde eles acabavam de limpar. Simpática a criatura não?

Numa bela manhã, no primeiro intervalo para o recreio do ensino médio, a biblioteca lotada, eu sozinha no atendimento pra variar e eis que essa bela criatura adentra o recinto. De imediato o clima na biblioteca se alterou. O rapaz atormentava a todos até que tentou tirar o jornal do dia e recortar algo que ele tinha interesse.

- Garoto, pode deixar o jornal onde está e, por favor, deixe a tesoura no lugar.

- Ah! Não pode usar a tesoura? Tá bom!

Voltei a atender uma aluna que levava um livro de física emprestado quando ouvi um som de papel se rasgando. Levantei meus olhos e não acreditei no que vi: o rapaz estava rasgando a notícia que lhe interessava. Tornei a falar com ele no que ele me respondeu:

-Você só falou que não podia usar a tesoura e não que era proibido usar minhas mãos para recortar o jornal.

- Garoto tenho certeza que você não é tão obtuso quanto deseja aparentar. Por favor, você entendeu perfeitamente o que disse. O jornal do dia é para ficar intacto para que todos possam ler. Se tem algo que te interessa, me avise que separo e amanhã te passo sem maiores problemas. Entendeu?

Tornei a me ocupar atendendo outros alunos quando ouço ele falar:

- Se essa vaca pensa que vou desistir disso está muito enganada. Quem ela pensa que é?

Bom, não preciso nem dizer que o sangue subiu até o tampo de meu cocoruto e num átimo de segundo, havia dado a volta no balcão que nos separava e frente a frente com o simpático rapaz inquiri:

- Repete o que disse olhando agora nos meus olhos! Repete!

- O quê tia?! Tá maluca? Não falei com você!

- Cadê o valentão? Não é você que vive pelos cantos dizendo que faz e acontece? Prova sua valentia me olhando dentro dos olhos e repetindo aquilo que acabou de dizer pelas minhas costas. FALE!

- Não sei do que você está falando... eu heim?!

Voltei para os outros alunos que ali no balcão já se encontravam e perguntei à eles:

- Vocês ouviram muito bem o que ele falou agora a pouco não ouviram?

- Sim, eu ouvi muito bem. Disse um garoto me olhando de forma solidária.

- Eu também ouvi tia. Uma outra garota falou olhando para mim e depois para o rapaz que me agredira verbalmente.

- Muito bem. É só do que preciso: testemunhas. Vocês me acompanham até a sala do diretor? Vocês podem testemunhar sobre o ocorrido? Tem algum problema?

- Não! Disseram os dois juntos.

- Ótimo! Pessoal, a biblioteca está fechando! Por favor queiram sair pois tenho que fechá-la. Você não garoto. Você fica e só sai comigo e esses dois direto para a sala do diretor.

- Qualé tia? Tá maluca? Eu não fiz nada!

- Você fica!! Falei enfaticamente olhando-o nos olhos de forma bem grave.

Após fechar a biblioteca, chamei um rapaz da disciplina e pedi que nos acompanhasse até a sala do diretor.

Ao nos receber e ouvindo atentamente ao que eu disse, ao que os garotos confirmaram o diretor voltou sua atenção ao acusado e falou:

- Muito bem, muito bem, muito bem heim meu rapaz? De nada tem adiantado nossas inúmeras conversas e orientações! Você parece ter um prazer imenso em maltratar as pessoas que te rodeiam. Lembra da última conversa que tivemos? O que foi que disse à você?

- Sim, diretor! O senhor falou que da próxima eu ia embora da escola. Mas, por favor! Não faça isso! Meus pais me matam! Por favor senhor diretor!

Olhando para mim de forma suplicante, ele pediu:

- Por favor moça! Eu vou ser expulso do colégio!

- Não tenho intenção alguma de ajudar a expulsar ninguém. Mas vamos combinar: você é muito abusado! Quem você pensa que é? Humilha, ofende as pessoas e acha que está tudo bem? Qual o problema com você? O que falta em sua vida menino?

- Você não quer ser expulso do colégio? Então se arrependa sinceramente e peça desculpas à bibliotecária por sua atitude infeliz. Vamos, estou esperando!

- Tudo bem diretor mas...tem de ser na frente desses dois?

- Pode apostar que sim meu jovem! Isso se não quiser que o colégio inteiro seja chamado para te ouvir. Vamos! Pode começar!

Por alguns segundos que pareceram uma eternidade, ele me olhava com os olhos marejados e com um nó na garganta que o impedia de falar. Só saía uns grunhidos indecifráveis. Após um tempo que se tornou desagradável a todos ali naquela sala, o diretor falou:

- Anda logo com isso que não tenho o dia inteiro. Vamos!

- De-Desc..ulpa...saiu quase imperceptível

- Não ouvi. Fala mais alto. Disse o diretor.

- Esculp...aaah Lágrimas já escorriam por sua face desfigurada

- Continuo não ouvindo direito. Mais alto sim? Falou o diretor de forma mais grave, olhando-o firmemente.

- Senhor diretor, eu já entendi que ele está arrependido. Não precisa repetir. Disse me sentindo muito mal por, de certa forma, ser a responsável por tal situação.

- Senhorita, eu ainda não entendi. Não tenho sua sensibilidade. Quero ouvir nitidamente as desculpas dele. Pode prosseguir.

- Desculpa moça! Desculpa, por favor desculpa! Nunca mais falo assim com você! Após esse desabafo, caiu num choro convulsivo que dava dó.

Todos naquela sala ficaram emocionados e, com os olhos cheios d’água, o diretor respirou fundo, fungou um pouco, pigarreou e disse:

Rapaz, acredite que hoje sua pele foi salva pelo coração sensível dessa garota nova da biblioteca. Mas entenda de uma vez por todas. Aprenda a respeitar as pessoas ou irá sofrer muito ainda nessa vida. Vá e nunca mais repita isso com ninguém pois da próxima, não haverá perdão. É expulsão na certa. Vá!

Após esse episódio, nunca mais esse rapaz me atormentou. Ao chegar ao último dia do ensino médio, ele foi até a biblioteca se despedir de mim e pediu para eu não guardar raiva dele pelo ocorrido no passado. Desculpou-se mais uma vez e foi-se embora.

Anos mais tarde, passando em frente ao SESC Consolação, quase tomei um esbarrão de um moço que saía apressado de lá. Imediatamente se desculpou de forma educada e preocupado quando nos olhamos e imediatamente nos reconhecemos.

- Tia da biblioteca!!! Tudo bem? Lembra de mim? Virei gente, entrei na faculdade! Estou estudando no Mackenzie, aqui ao lado.

- Oi menino! Nossa! Como você cresceu! Está um homem! É claro que me lembro de você. E então? Só cresceu no tamanho ou também amadureceu?

- Tia, mudei! Virei homem de verdade! Acredite, não sou mais um mala como era quando moleque. Até namorando estou! Estou trabalhando e tudo! E muito do que sou hoje devo a você por ter me dado outra chance. Obrigado de novo! E Aí? Trabalha ainda no colégio?

- Não. Trabalho agora em um outro colégio. Fico feliz em saber que está bem.

- Boa sorte e tudo de bom em sua vida.

Conversamos mais alguns minutos e depois se despedindo, cada um seguiu seu rumo. Sai feliz desse encontro causal sabendo que minha atitude no passado ajudou a firmar o caráter de um jovem que se encontrava perdido. Após o triste episódio, retornei a minha rotina na biblioteca e até ele se formar, tratei-o sempre com respeito e não o descriminei como tantos o faziam. Acredito que isso o tocou e ajudou a repensar sua atitude com os demais. Esse é um dos ganhos na profissão que escolhi. Vejo e de alguma forma colaboro na lapidação desses jovens que pouco a pouco vão se firmando, amadurecendo e aprendendo para a vida. Não é somente com sugestões de leitura e no auxílio em suas pesquisas escolares que me torno uma peça importante em suas vidas. De certa forma, sirvo de bússola em suas buscas pessoais. E isso é bom demais! Acompanhar um menino se transformar num homem!

4 comentários:

Kátia disse...

Oi, Roseli!
Também sou bibliotecária escolar e já trabalhei em escolas com ensino fundamental e médio. Nosso papel de educadores é muito importante para a formação de crianças e jovens e envolve muito mais do que o incentivo à leitura e o auxílio à pesquisa, como tu mostras neste post.
Parabéns e um abraço
Kátia - Biblioteca ETS

Ana Luiza Chaves disse...

Roseli,

Acima de tudo, nós, bibliotecários, somos educadores. Fiquei feliz por você, pela classe, pelo rapaz.
bjs.

Dribook disse...

Trabalhei em biblioteca escolar e passei por situações semelhantes...
E comprovei que o respeito mantém a integridade de todos.
Grande beijo!!!Adorei!

Dri disse...

Uau!

Parabéns, Roseli!!!
Muitos bibliotecários não tem essa percepção que você mostrou durante toda a situação.

Mesmo com a pouca experiência na área que tenho, já vi muitos bibliotecários robôs e isso contribui para o esteriótipo negativo que temos em nossa profissão. Parabéns por fazer diferente!

Grande beijo,
Adriana Ornellas